Inquisição
A Inquisição corresponde a um modelo de política criminal que se edifica na Alta Idade Média até a Modernidade. Cabe ressaltar, contudo, que a Inquisição que nos interessa, por ter vinculação com a identificação do homem no centro de medidas e procedimentos que vão contribuir para o processo de humanização do processo penal, é a da Igreja Católica, que aparece no século XIII, por meio de registros papais. Houve, contudo, a Inquisição reformista, que não nos serve de referência na identificação da construção de uma política criminal consistente, que tenha de algum modo trazido procedimentos e medidas no campo do processo penal. A Inquisição caracterizou-se pela perseguição aos hereges, aos dissidentes de Igreja católica em termos políticos, de não sujeição à doutrina cristã,praticantes de religiões pagãs, diferentes, mais antigas, com ritos distintos do Cristianismo. O tribunal eclesiástico, durante a Alta Idade Média, vai buscar punir aqueles que tinham uma postura contrária aos dogmas da Igreja, de resistência ao poder político e econômico, muito mais do que propriamente o viés religioso, que mais se identifica à Inquisição reformista.
Em termos ideológicos, representava a perseguição aos não cristãos, dentro de uma doutrina que tem uma visão de que o mundo é divino, governado por Deus. A realidade deve representar o mundo das ideias, divino, que só pode ser acessado pela fé, só pode ser compreendido pela fé. E nesse sentido, o homem que a professa é o cristão, que expressa a vontade divina. O crime, o erro, o pecado existem na ausência da presença de Deus, uma vez que Deus só havia feito o bem, o acerto, o correto. O indivíduo, o homem que está no erro, assim está por vontade própria. Precisa, então, ser educado para compreender a verdade. Neste enquadramento estavam, na Alta Idade Média, os cátaros, uma espécie de grupo de dissidência, que professava um certo purismo como a verdadeira expressão do Cristo, que era pobre. Rechaçavam a riqueza e o poder da Igreja. Assim como os cátaros, também estavam os burgomilos e os albineses, que foram perseguidos e mortos, sendo estes representantes da cidade de Albi na França, exemplo que teve sua população condenada. Em termos de expressão política, pode-se dizer que esta é também a razão pela perseguição que sofreram, uma vez que sua oposição à Igreja, além de ter conotação teológica, implicava numa resistência política.
A Bula Papal de 1215, de Inocêncio III, sistematizava a perseguição aos hereges, sujeitando-os à tortura como meio de prova e tratamento do acusado. Isto porque tal Bula determinava como "rainha das provas"a confissão e para tanto, o juiz precisava garantir um processo justo por meio da presunção de inocência como um tratamento que representava modo de prova. O juiz não podia ter a íntima convicção sobre a culpa do acusado, precisando, portanto que a prova fosse demonstrada, num contexto em que a justiça era transcendente ao homem e que ele precisava ser posto livre do pecado.
A presunção de inocência, que pode ser encontrada no brocardo jurídico in dubio pro reo de Ambrósio (século IV), representa tanto modo de prova quanto tratamento do acusado. Em sistemas jurídicos anteriores, se pode dizer que o princípio já existia. No sistema acusatório da vingança privada, no tribunal de Deus, com a aplicação das ordálias também a inocência era um princípio posto em que acusado e vítima gozavam desse benefício. Ambos passavam por tal sistema de prova.
No sistema inquisitivo da Igreja católica era exatamente porque a inocência era presumida que o juiz não tinha juízo antes da coleta das provas, cujo método eram os tormentos para que o indivíduo fosse salvo, tivesse sua libertação da escravidão a que estava sujeito pelo pecado, pelo erro, que uma vez confesso estaria o indivíduo liberto. Este sistema sofrerá declínio, na medida em que se caminha para a Renascença. A perseguição ou a caça às bruxas ou feiticeira terá seu auge, principalmente, entre os séculos XVI-XVII atingindo milhares de pessoas, em grande maioria de mulheres. (Marion Sigaut) Não obstante, tal perseguição foi feita pelos reformadores. Dissidência da Igreja, a Reforma será orientada por diversos grupos, sendo os mais conhecidos os luteranos, calvinistas e huguenotes.
Um grupo de forte atuação na França entre os séculos XVII e XVIII foi o jansenismo, idealizado por teólogo, com o nome que deu origem, Cornelius Jansenius, que durará até o século XIX. Desse grupo, faziam parte vários Iluministas,humanistas e juristas. Jean Bodin, Cesare Beccaria, Pascal Racine, La Fontaine teriam feito parte de tal grupo. O jansenismo, diferentemente do catolicismo, acreditava que apenas um grupo era tomado pela graça divina. O catolicismo, entretanto, porque considerava que qualquer um podia ser convertido à fé cristã, aplicava o pagamento de indulgência para a salvação da alma.
As figuras mais perseguidas eram mulheres e por bruxaria, posto que era um mundo em transformação em pleno Renascimento ainda às vésperas da Modernidade,que se avizinhava, com o surgimento da imprensa, com a tradução e a publicação da Bíblia por Lutero.Cidades estavam surgindo no encontro entre caminhos dos mercadores, conflitos entre religiões que buscavam o reconhecimento do poder de dizer, de definir Deus. Mulheres do campo, que tinham uma vida menos pré-determinada que as mulheres das cidades que estavam surgindo,eram as principais atingidas pela acusação de bruxaria. O aumento da caça às bruxas por tribunais seculares mostra que havia confusão entre religioso e político: "sem a mobilização desse poder secular, a grande caça às bruxas teria sido uma sombra do que foi" (Levack, p 80). No final do século XV, Sprenger e Kramer, este um padre alemão atormentado pela ideia de pecado, muito possivelmente, preso em psicose, elaborou um manuscrito para servir de base à perseguição principalmente dessas mulheres,mormente pela preocupação com a sexualidade, o malleus maleficarum, que foi criticado pela própria Igreja.
O jansenismo foi uma das expressões do iluminismo, que mostra a ascendência ou emergência de uma perspectiva de mundo que vai se projetar na Revolução Francesa, uma revolução liberal, que teve como principal referência o homem em seus direitos, sem que os que ensinam sobre tal período deixassem mais em evidência a perspectiva da relevância do mercado como contexto de veiculação de tais direitos, como já havia sido apontado pelo ministro Turgot do reinado de Luis XV.
O jansenismo foi um movimento cultural, político e social, fazendo parte da elite intelectual e econômica francesa, bastante presente no Parlamento de Paris. Representa uma crítica à estrutura mundana, tendo um olhar negativo sobre o mundo, olhar pessimista sobre o homem. Deus estaria no centro do processo de salvação, sendo o homem secundário, pois só faz o mau. Isto porque só é capaz de fazer o bem, segundo tal doutrina, o homem que é escolhido por Deus que lhe faz recair a graça, como um predestinado. Sendo assim, havia uma concepção de determinismo, em oposição a uma percepção de que o homem fosse capaz de exercer o livre arbítrio.
Trata-se de uma doutrina anti-humanista, para a qual o homem está predestinado ao mal. Corresponde a uma visão narcísica negativa, afastando o homem do mundo da vida, da política, retido em um moralismo purista, permitindo, em contrapartida, o entendimento de que o homem nunca está pronto, e assim, a espera de um salvador, um libertador, do populismo que se impõe pelo medo. O Marques de Pombal repercutiu tal doutrina no Brasil do século XVIII, com consequências importantes num país que foi dirigido pelas Ordenações Filipinas até 1830, portanto o mesmo instrumento jurídico que se estendeu desde 1603.
A doutrina jansenista criou uma mentalidade no país que permite até hoje a gestão do desejo da população pelo que é ditado de fora, por uma certa aceitação de um determinismo que desqualifica o homem em dirigir seu próprio destino. Vigora uma certa perspectiva de que virá um salvador, um certo medo, uma autoestima baixa, um sentimento de incapacidade. O que permite, por sua vez, doutrinas, como as que vemos hoje de vieses marxistas, sob o título de socialismo, com grande aceitação. Parece que o país está voltando seu olhar para fora da caverna.